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Gestão & Liderança Postado em terça-feira, 09 de março de 2021 às 10:17


Uma conversa com Bill Gates, cofundador da Microsoft e filantropo.

Com um patrimônio líquido de mais de US$ 100 bilhões, Bill Gates dedica tempo e dinheiro para tentar resolver alguns dos problemas mais incômodos de nosso tempo: HIV/AIDS, tuberculose, malária e covid-19. Ele também está focado nas mudanças climáticas e acaba de publicar o livro How to avoid a climate disaster. Nele, argumenta de forma convincente que o mundo precisa zerar as emissões de carbono até 2050. Ele deixa claro que atingir essa meta não será fácil, mas é possível, especialmente se encontrarmos maneiras de estimular a inovação verde. Gates conversou recentemente com o editor-chefe da HBR, Adi Ignatius, em seu escritório em Seattle. Segue uma versão editada da conversa.


HBR: Já existem muitos livros sobre a urgência do desafio climático. Por que você decidiu tratar desse assunto agora?

Gates: A geração millenial fez com que, mesmo em face da pandemia, prestássemos atenção às mudanças climáticas. Nas últimas eleições nos EUA, muitos candidatos fizeram do assunto uma prioridade. Portanto, temos um compromisso. Mas temos de fato um plano para chegar a emissões zero de carbono? Quero contribuir com minhas ideias mostrando o que é necessário para desenvolver os avanços de que precisamos para chegar lá.


O livro parece contrastar a terrível ameaça de mudanças climáticas com sua propensão ao otimismo. Qual é a principal mensagem que você gostaria de passar aos leitores?

É que chegar a emissões zero de carbono é mais difícil do que as pessoas imaginam. O mundo libera cerca de 51 bilhões de toneladas de carbono por ano. Quando as pessoas pensam em reduzir isso, elas tendem a se concentrar nas coisas fáceis: usar fontes renováveis para geração de eletricidade ou usar energia elétrica nos carros. Mas precisamos progredir em outras grandes áreas, como concreto e cimento de baixas emissões. E precisamos ter certeza de que as políticas públicas do governo, o comportamento corporativo e os hábitos de consumo pessoal estão contribuindo para as soluções.


Em que medida estamos no caminho certo para zerar as emissões até 2050?

Se você ignorar o efeito temporário de redução devido à pandemia e à crise econômica, não estamos no caminho certo. As emissões continuam aumentando. Para chegar a zero até 2050 precisaremos de quedas dramáticas em todas as categorias, ano após ano.



Você escreve que, mesmo se pudermos cortar as emissões de carbono pela metade, isso apenas adiaria — e não evitaria — uma catástrofe climática. Existe algum precedente para uma transição dessa magnitude?

Essa escala de mudança nunca aconteceu. Deverá ser a coisa mais incrível que a humanidade já fez. Fazer uma vacina para o coronavírus foi rápido, mas foi muito mais fácil. Foi realizado com base nos investimentos que a Gates Foundation e outras empresas fizeram na última década em abordagem de mRNA. Para o clima, é importante não gastarmos dinheiro apenas na redução, digamos, de 15% no uso de eletricidade. Precisamos investir nas inovações que realmente farão a diferença.


Se não conseguirmos chegar a zero, o que vai acontecer?

Bem, a temperatura vai continuar subindo. Ecossistemas naturais como os recifes de coral e o Ártico irão desaparecer. Se você possui terras de cultivo no Canadá, obterá safras melhores porque a temperatura vai aumentar. Mas se você possui terras no Texas ou no México, as coisas vão piorar. Não será mais possível cultivar o milho por lá. E para os agricultores de subsistência que vivem perto do equador — em partes da África, por exemplo — será desastroso. Eles não terão comida suficiente para sobreviver.


Você escreve que, em meados deste século, a mudança climática poderia causar cinco vezes mais mortes do que a Covid-19, com um efeito econômico muito mais devastador. A Covid foi um desastre em tempo real. No entanto, embora as mortes e a devastação tenham acontecido de forma escancarada, pode-se dizer que falhamos em nossa resposta. Então, como vamos responder aos efeitos mais abstratos e lentos das mudanças climáticas?

No caso da pandemia, se os EUA tivessem tomado as medidas que eu e outras pessoas sugerimos quando alertamos para o perigo, a situação teria sido parecida com a da Austrália ou do Japão, com um número muito modesto de mortes. Responder às mudanças climáticas é mais difícil porque a quantidade de inovações necessárias é muito maior e, como você disse, os efeitos negativos acontecem no futuro distante. No caso da pandemia, não se sabia em que ano ela aconteceria. Eu poderia ter passado a vida inteira sem que ela acontecesse. Com as mudanças climáticas, podemos garantir que os efeitos nocivos vão acontecer. Ainda há dúvidas: por exemplo, a temperatura vai subir quatro ou cinco graus? Mas o desastre é certo, a menos que reduzamos as emissões de forma dramática.


Há também o problema da negação das mudanças climáticas. Recentemente, dei uma palestra para investidores e os convidei a enviar perguntas, que foram colocadas em uma tela para que a multidão votasse naquela que mais lhes interessava. A pergunta mais popular foi “a mudança climática é real?” São pessoas bem-sucedidas e bem-educadas, com acesso a todo o conhecimento a que você tem acesso, mas que não estão acreditando nas mudanças climáticas. O que está acontecendo?

Felizmente, o negacionismo está diminuindo. Já não há mais empresas que, de forma egoísta, tentam criar mais incerteza. Mas temos dois problemas. Primeiro, ainda existem os negacionistas e temos que trazê-los para a causa — em parte minimizando o custo do que fazemos para evitar as mudanças climáticas. Em segundo lugar, temos que mostrar aos que acreditam o quanto o desafio é difícil. Não se trata apenas de executivos teimosos de petróleo e empresas de serviços públicos. E não podemos fazer um progresso significativo simplesmente desinvestindo ações aqui e ali e usando um pouco menos disso ou daquilo.


Quem é o principal público do seu livro? Pessoas que acreditam que a mudança climática é genuína, mas não entendem o que será necessário para realmente fazer a diferença?

Sim, é para as pessoas que pensam que será fácil. Ou quem pensa que só precisamos identificar o bicho-papão por trás do problema. O que realmente precisamos é de muita ciência. Precisamos aumentar os orçamentos de P&D para aproveitar o talento que temos nas universidades e laboratórios. E precisamos reforçar o financiamento disso tudo. A comunidade de capital de risco até agora teve uma experiência ruim com investimentos verdes. Precisamos aproveitar o capital de alto risco que é estruturado para a natureza de super-longo prazo dos produtos que serão necessários.


A negação do clima pode estar diminuindo, mas os esforços que você menciona exigirão um consenso que não existe no momento. Como você bem sabe, há uma forte corrente anti-ciência e anti-experts na sociedade que deve ser levada em consideração.

Acho que mais gente vai mudar de opinião ao ver os incêndios florestais e os furacões que resultam em parte das mudanças climáticas. Acho que os mais jovens já têm a mente mais aberta para os investimentos de longo prazo de que precisamos, porque estão pensando em que tipo de mundo irão viver. Mas também precisamos dizer que esse esforço não vai tirar dinheiro de outras coisas importantes que o governo financia.


Você cunhou o termo “prêmio verde” para se referir a quantia extra que precisamos pagar pelos produtos de carbono zero para substituir os produtos existentes. Se o prêmio verde for baixo, provavelmente adotaremos o substituto. Se for alto, precisaremos de mais P&D e investimentos.A principal métrica para chegar às emissões zero é até que ponto estamos reduzindo esses prêmios a um nível aceitável. Se rastrearmos as inovações que fazem com que eles caiam, teremos uma ideia se vamos chegar a zero ou não. Do contrário, precisaremos aumentar ainda mais os orçamentos de P&D para criar novos produtos. E assim que os mercados para esses produtos chegarem a uma certa escala, isso ajudará a impulsionar as coisas para o próximo nível.


E quanto ao elemento político? Nos EUA, um presidente dá ordens para proteger o meio ambiente, seguido por outro que dá ordens para desfazer as proteções. Se você não tem unidade de propósito, como vamos chegar lá?

Quanto mais você olha para a política, mais vê que a abordagem da força bruta de apenas continuar pagando esses prêmios verdes não é sustentável. A inovação é a única maneira de resolver isso. Sim, precisamos de boas políticas. Precisamos de um orçamento maior de P&D. E precisamos de um imposto sobre o carbono e outras medidas para reduzir a demanda de energia. Havia grandes benefícios fiscais para investir em painéis solares — uma política que sobreviveu aos governos democratas e republicanos. Esses incentivos ajudaram a diminuir a curva de aprendizado até o ponto em que a necessidade do subsídio quase acabou. Esse dinheiro agora pode ser aplicado nas próximas áreas, como armazenamento de baterias, combustível de aviação, aço e cimento. As políticas públicas são importantes, mas os investimentos de trilhões de dólares que os candidatos propuseram antes das eleições nos EUA em 2020 provavelmente não acontecerão. É um sacrifício muito grande gastar tanto dinheiro. Precisamos de um plano que custe dezenas de bilhões, não trilhões, e estimule a inovação.


Então, em última análise, é tudo uma questão de inovação?

Sem inovação, não acho que podemos evitar desastres climáticos. Se a ciência estivesse congelada e fosse necessário tomar todas as decisões certas por meio da política, isso não iria funcionar. Você não pode fazer a Índia, por exemplo, interromper suas emissões quando outros países não estão acompanhando. Não podemos resolver isso sem inovação. Com dezenas de bilhões em inovação, uma porcentagem modesta do orçamento, acredito que seria possível obter um consenso bipartidário para avançar nessa área, independentemente de qual partido esteja no poder.


Como você aumenta a oferta de inovação?

Temos alguns modelos. Na área médica, os EUA gastam cerca de US$ 40 bilhões por ano no National Institutes of Health. Isso levou a enormes avanços no tratamento do câncer e em outras áreas, e muitas empresas sediadas nos EUA fabricam produtos derivados da pesquisa. Acho que agora há alguma chance de apoio bipartidário no congresso para mais pesquisas relacionadas ao clima. A próxima etapa é obter capital de risco. Ajudei a criar a Breakthrough Energy Ventures, um fundo liderado por investidores que busca universidades e laboratórios nacionais para descobrir quais projetos estão prontos para desenvolvimento. É de prazo mais longo e é mais paciente do que os produtos típicos de empreendimento, o que ajudará a acelerar a transição do laboratório ao mercado.


Você falou ao longo dos anos sobre como a energia nuclear é crítica para criar um futuro sem carbono. Seu livro apresenta esse argumento com moderação. É porque você duvida da vontade, especialmente nos EUA, de levar a energia nuclear a sério?

Há problemas na energia elétrica e na natureza intermitente de fontes limpas como a eólica e a solar. Uma forma de lidar com isso seria conseguir um milagre de armazenamento, com baterias 20 vezes melhores do que as que temos hoje. Infelizmente, há uma boa chance de não conseguirmos isso. Uma alternativa seria contar com a fusão nuclear, embora ela tenha um grande problema de aceitação social em termos de segurança, e os reatores foram superfaturados e construídos de forma pouco econômica. Mas a energia deve vir de algum lugar. E sim, eu não queria que o livro parecesse uma promoção da TerraPower [uma empresa de design de reatores nucleares que Gates fundou e preside]. Claro, todo dinheiro que eu ganhar com isso irá para a Fundação Gates. Eu queria que o livro apresentasse os diferentes caminhos para uma energia mais limpa de forma neutra.


Existe um ponto sem volta para as mudanças climáticas?

Não há um momento em que o mundo de repente pega fogo e desaparece. É uma questão de quantas pessoas morrerão e quantos ecossistemas desaparecerão. Em algum momento, a Amazônia vai secar e se tornar uma savana. Eventualmente, você não terá gelo ártico, ursos polares ou recifes de coral. Você não vai fazer plantações. As pessoas que falam sobre as mudanças climáticas costumam dizer que há um ponto mágico de ruptura, mas não sabemos isso de fato. Apenas sabemos que, se você ignorar as mudanças climáticas, essas tragédias ambientais e humanas eventualmente acontecerão. Um fato triste é que existem atrasos neste sistema de tal forma que, mesmo quando você zera as emissões, as temperaturas não esfriam por cerca de duas décadas. Portanto, provavelmente não estarei vivo em um ano mais frio do que o anterior.


Como você garante que este seja um esforço verdadeiramente global?

O problema é que ainda que governos dos países ricos concordem com ele, precisamos torná-lo atraente para os países menos ricos seguirem o mesmo caminho. As pessoas nos países em desenvolvimento merecem ter mais abrigo, mais eletricidade e a capacidade de se locomover. Lugares como a Índia ainda precisam de mais desses serviços de emissões intensivas para criar um estilo de vida decente para a população. Portanto, cabe aos países ricos, principalmente os EUA, que têm tanto poder de inovação, investir e criar abordagens que nos levem ao zero.


O que as empresas podem fazer para fazer a diferença?

Os empregadores têm muito poder de compra. Eles podem comprar combustível de aviação limpo para suas frotas aéreas privadas. Podem investir capital em empresas inovadoras de alto risco. E podem garantir que não estejam impedindo o progresso.


E quanto aos grandes investidores institucionais? Se eles se afastarem do carbono, isso não ajudaria?

De modo algum. Tirar capital dos combustíveis fósseis pode ser um bom assunto para uma conversa de festas de coquetel. Mas alguém vai parar de usar cimento porque um cara de Wall Street está desinvestindo? Qual é a teoria? Não há conexão. Agora, se as grandes empresas investirem em vez de desinvestir, se financiarem inovações de alto risco relacionadas ao prêmio verde, então elas passam a fazer parte do ganho.


E o que você espera do governo?

Nas democracias, precisamos que os cidadãos se interessem pelas ideias verdes e as promovam para que os políticos sintam que têm um mandato para trabalhar nessas áreas. Sem o governo criando demanda por novos produtos, permitindo que o aço seja certificado de uma nova forma que usa menos carbono, por exemplo, não chegaremos a emissões zero em 30 anos.


O que as pessoas podem fazer para ajudar?

Elas podem comprar produtos limpos como o Impossible Burger ou carros elétricos. Podem tentar usar menos materiais. Podem mudar o consumo de forma que produtos limpos possam ganhar escala e seus custos diminuam. E podem eleger políticos dispostos a financiar a P&D e criar as políticas de que precisamos. Se eu tivesse um desejo para os EUA, faria com que o investimento de bilhões em inovação fosse uma prioridade bipartidária. Precisamos de pessoas que defendam isso.

Fonte: Harvard Business Review Brasil
Gestão & Liderança Postado em terça-feira, 02 de março de 2021 às 09:45


O mundo mudou. Como consequência da pandemia da covid-19 e da recessão por ela causada, líderes empresariais, inovadores, empreendedores e investidores estão se preparando para um longo período de enormes desafios no mercado mundial. Como startups e inovadores de todos os tipos conseguirão sobreviver em tais condições? Muitos não estão preparados.

A situação atual é especialmente complicada para as empresas do Vale do Silício, onde o modelo predominante é a criação de unicórnios, como são chamadas as startups com valor superior a US$ 1 bilhão. Normalmente, elas têm rápido crescimento. No entanto, o problema agora é que esse modelo de crescimento a qualquer custo, especialidade do pessoal do Vale do Silício, só dá certo em um mercado de alta, e em ótimas condições de funcionamento.

Mas vamos considerar algo que eu chamo de “fronteira”: aqueles ecossistemas de negócio fora da bolha, onde as startups têm menor acesso ao capital, ou a um capital humano treinado para as startups, e onde, principalmente nos mercados emergentes, elas estão mais suscetíveis a choques macroeconômicos severos e imprevisíveis. Em vez do unicórnio, o camelo é o mascote mais adequado. Camelos são capazes de sobreviver por longos períodos sem se alimentar, suportando as altas temperaturas do deserto e se adaptando a variações climáticas extremas. Sobrevivem e prosperam nas regiões mais inóspitas da Terra.

Essas startups camelo oferecem a empresas de todos os setores lições valiosas de como sobreviver durante a crise, e de como se sustentar e crescer em condições adversas, ainda que a metáfora não seja das mais interessantes. Para isso, usam três estratégias: praticar o crescimento equilibrado, olhar para o longo prazo e ter um modelo de negócio diversificado.


Equilibrar, em vez de queimar

Camelos não têm interesse em “blitzscaling”, ou seja, construir empresas rapidamente, priorizando a velocidade em detrimento da eficiência, em busca da escala em massa. Têm tanta ambição de crescer, quanto qualquer empresa do Vale do Silício, mas escolhem o caminho do equilíbrio. Essa abordagem equilibrada tem três elementos principais.

Precificação correta desde o início. Para começar, os empreendedores nos mercados emergentes não oferecem produtos de graça ou com subsídios visando ganhar mais consumidores e, com isso, resultando em uma elevada “burn rate”, ou o valor gasto, ou “queimado”, na operação do negócio. Em vez disso, cobram o valor do produto de seus consumidores desde o início. Camelos sabem que o preço não deve ser visto como uma barreira ao crescimento. Na verdade, ele é uma característica do produto que reflete sua qualidade e posição no mercado.

Gestão de custo em todo o ciclo de vida.
Da mesma forma, camelos fazem a gestão de custos durante todo o ciclo de vida da empresa, em alinhamento com uma curva de crescimento de prazo mais longo. Matt Glotzbach, CEO da Quizlet, empresa de educação à distância, entende essa estratégia como um custo de aquisição e sua despesa principal: as pessoas. “Você quer uma empresa que consiga sobreviver a altos e baixos”, diz ele. “A resiliência, para mim, depende de dois fatores: um deles são os indicadores financeiros para aquisição de clientes, e o outro é o quanto se deve investir em pessoal antes de a curva da receita começar a crescer. É assim que tomamos decisões calculadas e criamos expectativas para investimentos; se estivermos certos, cresceremos, e, se estivermos errados, o prejuízo não será tão expressivo”.

Mudança de trajetória. Gerenciar a burn rate durante todo o ciclo de vida da empresa ajuda as startups a se prepararem para atravessar condições desafiadoras por um período sustentado. Uma startup típica do Vale do Silício tem uma trajetória de caixa com um acentuado “vale da morte”, a linha do gráfico que reflete perdas abruptas antes de se atingir a rentabilidade. A linha para as startups “de fronteira” é diferente. Obviamente, camelos não deixam de buscar crescimento ou financiamento com capital de risco, mas sua trajetória de escala e a burn rate associada são menos extremas. Em alguns casos, como o da Grubhub, as empresas camelo crescem em arrancadas controladas, optando por somente pisar no acelerador e investir (normalmente por meio de capital de risco), quando a oportunidade disponível assim determina. Após uma certa arrancada, a sustentabilidade (normalmente acompanhada da rentabilidade) estará ao alcance delas, se necessário. A diferença é que camelos têm sempre a opção de adaptar sua trajetória de crescimento e voltar a ser um negócio sustentável.


Camelos percorrem longas distâncias.

Os fundadores de negócios “de fronteira” sabem que construir uma empresa não é uma tarefa de curto prazo. Para muitos, os avanços não são imediatos; acontecem mais adiante na linha do tempo da empresa. A sobrevivência costuma ser a estratégia primária. Isso garante tempo para construir o modelo de negócio, encontrar um produto adequado ao mercado e desenvolver uma operação que possa progredir. A competição sempre existirá. Mas vencerá a corrida quem sobreviver por mais tempo, e não quem entrar no mercado antes.

A Quizlet captou US$ 30 milhões em uma rodada de investimento Série C, que a avaliou em US$ 1 bilhão em maio deste ano. A empresa não recebia recursos desde 2015, quando captou apenas US$ 12 milhões em uma rodada Série A, depois de dez anos no mercado. Ela não se apressou em chegar lá, operando com base na filosofia do “devagar e sempre” rumo ao crescimento. Segundo Glotzbach, o ritmo da Quizlet foi o que evitou sua destruição. “Se a Quizlet tivesse captado grande quantia em recursos no início do seu ciclo de vida, talvez não tivesse sobrevivido”, disse ele. “O risco de nutrir altas expectativas e receber uma injeção de investimentos logo no início talvez tivesse limitado a rápida aceleração necessária à empresa para fazer frente a tais expectativas. Como acontece com muitas outras startups, teríamos prometido demais, entregando menos”. Ter uma visão de longo prazo é fundamental para gerenciar o equilíbrio entre risco e retorno.


Abrangência e intensidade constroem resiliência

Empreendedores operando “na fronteira” encontram restrições incomuns que costumam se tornar forças em tempos de adversidade. Como os empreendedores costumam construir startups em mercados menores por necessidade – mercados que não são capazes de crescer por conta própria para sustentar a empresa – elas são forçadas a já nascerem globais, mirando vários mercados desde o início. Frontier Car Group, uma conhecida plataforma para comercialização de carros usados, por exemplo, foi lançada originalmente em cinco mercados, cada um deles atendendo a uma região. Em alguns países, o produto vingou, em outros, isso não aconteceu, e a empresa aprendeu lições valiosas no caminho, fechando os mercados em que não se encaixava. No entanto, se tivesse investido tudo no país errado, hoje talvez já nem existisse.

Da mesma forma, como não existe uma grande infraestrutura ou um ecossistema de produtos e serviços adjacentes nesses mercados “de fronteira”, os empreendedores precisam investir mais fundo e montar toda a rede de apoio necessária. Isso significa que têm múltiplas linhas de negócios e produtos, e que oferecem um ecossistema de serviços desde o início da operação. Quando uma linha desacelera, as outras mantêm o ritmo. Vejamos o exemplo da Guiabolso, uma plataforma brasileira de soluções de “Gestão de Finanças Pessoais”, que ajuda seus clientes a entender sua própria situação financeira para poder administrá-la melhor. Ao contrário de outras plataformas que funcionam em ecossistemas mais desenvolvidos, a Guiabolso teve de construir do zero sua própria rede de interconexões bancárias, fornecer avaliações sobre idoneidade financeira, sem uma infraestrutura nacional robusta de avaliação de risco, e iniciar seu próprio marketplace para permitir que os clientes aproveitassem ao máximo a nova estrutura.

Obviamente, os empreendedores não podem e nem devem levar essa estratégia ampla e profunda tão adiante. Montar uma startup é algo extremamente complicado, e espalhar-se em múltiplas frentes é receita para um desempenho pífio em todas elas. Por outro lado, camelos de sucesso investem recursos apenas em atividades que tragam benefícios, ou seja, aquelas em que as lições de sucesso ou fracasso ajudam o negócio como um todo, e promovem equilíbrio, ou seja, em que uma peça naturalmente compense a outra.

Ao priorizar o crescimento equilibrado, construindo a longo prazo, ao mesmo tempo que se aprofundam e diversificam, em nome da resiliência, as empresas camelo são capazes não apenas de sobreviver a choques de mercado, mas também crescer e prosperar em tempos bons e em tempos ruins. Resumindo, elas transformam as adversidades em vantagens. Ao nos prepararmos para os grandes desafios que se aproximam, as respostas não virão da bolha do Vale do Silício, mas do aprendizado com as empresas camelo da fronteira, que sempre souberam qual a solução.

Fonte: Harvard Business Review Brasil